segunda-feira, 30 de março de 2015

1º DE ABRIL DE 2015, O ANIVERSÁRIO DO GOLPE

O ANIVERSÁRIO DO GOLPE,
PARTIDO DOS TRABALHADORES E O POVO: OUSAR LUTAR , OUSAR VENCER.

Amanhã faz 51 anos que aconteceu o início do golpe militar de 1964. Eu tinha então 15 anos, na terceira série do ginásio, sétima série hoje e   tinha um professor de história, Oscar Holme, simpatizante do PCB e que me levou a sê-lo também. Ele sempre nos fazia um apanhado do que estava acontecendo no Brasil e no mundo, de mais interessante e nos incentivava a ouvir pelo rádio  (não eram todos que tinham TV naquela época) os programas noticiosos, Reporter ESSO e a hora do Brasil.
                                           


A gente sabia, portanto do comício do dia 13 de março da Central do Brasil no Rio de Janeiro que foi mesmo o estopim para o golpe. Sabia que queriam fazer a reforma agrária e um plebiscito para chamar uma nova Assembléia Constituinte para fazerem as reformas que o Brasil tanto queria, como queremos agora em 2015.
Mas o exército, Carlos Lacerda e sua UDN, A ELITE e outros políticos com a ajuda dos EUA, deram o golpe; depuseram Jango que o povo havia eleito democraticamente e puseram o general  Castelo Branco no lugar. Me lembro de ver na revista Manchete e na O Cruzeiro as fotos do exército , Marinha e Aeronáutica ocupando as principais cidades e o povo apenas olhando. Deixando passivamente acontecer.  Na igreja me lembro do meu vigário apoiando  o golpe que eles chamavam de “Revolução contra o Comunismo no Brasil”!
APAGANDO A MEMÓRIA DOS CRIMES COMETIDOS.

                                              
Aqui na minha cidade de Guaratinguetá, a Aeronáutica que tem a Escola dos Sargentos Especialistas  alvoroçou-se : no dia 1º não teve aula e dia 2 o professor Holme e outros nos falaram  de suas preocupações com o golpe. Eu era do Clube de Ciências do Instituto de Educação e do Centro Estudantino da cidade que representava os secundaristas e a única faculdade da cidade, a FEG. Soube dias depois que incendiaram a UNE que ficava no Rio de Janeiro. Nós aconselharam a não fazer nenhuma reunião naqueles dias, sob nenhum pretexto.
A verdade é que mesmo sendo  a inexperiente menina que eu era,  aprendi  com o correr daqueles dias de conversas contidas em sala de aula, de portas fechadas, que foram os poderosos meios de comunicação  apoiados pelos americanos, pela Igreja católica, pelo  empresariado rico , pela elite que sempre teve o poder nas mãos, que juntos com políticos oportunistas como Lacerda convenceram o povo  pelo rádio e pelos jornais e revistas ( a TV ainda era incipiente na época) que o presidente eleito João Goulart, o Jango do PTB, ia levar o país a um tipo de governo muito parecido com o da China, URSS e Cuba , comunistas . E que isso não seria bom para o povo católico e ordeiro do Brasil, já que os EUA não aprovavam ISSO.
A ojeriza pelos comunistas pintados pelos padres, pelo  jornal O Globo, O Estado de SP e a Folha, entre outros, de verdadeiros “comedores de criancinhas”  era tão grande que me lembro de minha mãe chorando ao dizer ao padre que ela não podia  comungar porque odiava Fidel Castro ! rsssss
                                              
LULA FALANDO AOS OPERÁRIOS NA GREVE DO ABC.

Mas o golpe só aconteceu da forma que foi porque houve uma falta de reação do governo, uma letargia incompreensível, até mesmo dos grupos que lhe davam apoio. Fracassou uma greve geral que a CGT chamou, fracassaram os militares legalistas que apoiavam o governo, os grupos que apoiavam Jango como Leonel Brizola, e até o presidente Jango desistiu para não ver correr sangue de irmão contra irmão. 
Meu namorado de então e marido de agora, Wilson com 18 anos  servia aqui em Lorena  no 5º Batalhão de Infantaria e conta que dia 30 ficaram de prontidão e marcharam para enfrentar os cariocas e mineiros que eram os golpistas . Ficaram por 20 horas em trincheiras em Queluz e Bananal sem comer nada e só com a água dos cantis esperando o embate que nunca aconteceu, já que na manhã de 1º de abril veio a notícia que o golpe já se consumara e o comando Paulista tinha aderido aos revoltosos. E eles puderam voltar à Lorena e comer no quartel.
Depois disso , já no secundário ( fiz o clássico no Instituto) e depois como universitária  fui à passeatas, lutei à minha maneira contra a ditadura, que matava operários e estudantes nas masmorras do poder. NADA se falava, pouco eu soube  sobre meus amigos que desapareciam sem deixar muitas pistas e só a gente imaginava  onde poderiam estar. Foram mesmo anos negros, dias sombrios para quem ansiava pela democracia e estava disposta a MORRER por ela! Grandes líderes surgiram então como o meu amigo e líder estudantil José Dirceu, Lula e outros.

                                        
O MEU  LIDER ESTUDANTIL JOSÉ DIRCEU EM UMA PASSEATA-1968.EU ESTAVA LÁ.

Nossa presidenta Dilma Roussef, a Wanda da Vanguarda Popular revolucionária foi torturada e presa nesses dias sombrios.

                                                 
DILMA DIANTE DOS MILITARES NA DITADURA.

Os militares ficaram no poder por 21 anos, e depois devagar, com muita luta , conseguimos acabar com ela e  eleger  nossos governos na democracia. Há apenas 12 anos o Partido dos trabalhadores está fazendo ainda de maneira tímida, mas sem interrupções as mesmas reformas e programas sociais defendidos lá atrás por Jango Goulart.
Vendo hoje o PSDB, que agora  faz o papel da UDN, a TV Globo, a mídia escrita e televisiva, a elite que votou em Aécio Neves e perdeu  massacrando todas as horas a presidente Dilma e o PT, faço um paralelo com as lembranças que eu tenho daqueles confusos dias de 1964.                            Sei que os tempos são outros, a rapidez da internet desmente em tempo real as arapucas e mentiras que eles armam a cada passo; mas eles querem e clamam por um golpe agora, que pela 4ª vez perderam as eleições para presidente. É bom estarmos atentos, é bom que a gente não esqueça. É bom que a memória permaneça! GOLPE NÃO, MILITARES NÃO!

       DEMOCRACIA, SEMPRE MAIS, DITADURA, NUNCA MAIS!!!!

                                                  

segunda-feira, 9 de março de 2015

MULHERES SINGULARES ( DE SILVIO PRADO)





MULHERES SINGULARES (  SILVIO PRADO)


PARA HOMENAGEAR AS MULHERES , NÃO ACHEI NADA MELHOR QUE ESSE TEXTO DO AMIGO SILVIO PRADO. 


    Nos livros didáticos de história do Brasil sobram personagens masculinos e faltam mulheres. Só muito recentemente começaram a freqüentar suas páginas personagens como Chiquinha Gonzaga, Olga Benário Prestes, Chica da Silva, por exemplo. Antes das mulheres vindas das camadas populares, geralmente apareciam nos livros didáticos apenas personagens femininas do setor dominante da sociedade brasileira, como a princesa Isabel e a imperatriz Leopoldina, mais como coadjuvantes do que personagens de peso nos eventos protagonizados também por elas.

       Como nossa história nunca foi contada do ponto de vista da população, nos livros didáticos a história das mulheres, como a dos negros, índios e pobres em geral, sempre foi um relato inexistente. Por isso, quem folhear obras usadas em nossas escolas não encontrará nelas sequer uma palavra sobre mulheres como Nísia Floresta, nordestina que no século XIX colocou sua capacidade literária para combater a escravidão, defender os índios e a educação, principalmente a da mulher. Pensando na emancipação feminina, Nísia Floresta fundou um colégio só para meninas e tornou-se a primeira a defender publicamente as idéias de igualdade de gênero no país. No entanto, Nísia, como tantas outras lutadoras, é uma desaparecida de nossa história.
                                                 

                                                     
NÍSIA FLORESTA


         Nos últimos anos, um e outro livro didático tem citado, quase superficialmente, o nome de Patrícia Galvão, também conhecida como Pagu, lindíssima mulher que provocou dores de cabeça nos conservadores do início do século XX. Pagu escreveu poesia, crônicas, dirigiu teatro e fez militância política. Comunista assumida, acabou presa e torturada durante o Estado Novo de Getulio Vargas. Mas cinco anos de prisão não serviram para calar sua voz. Sobre ela, há inúmeros livros e também um filme longa metragem, dificilmente encontrado nas locadoras.               

                                                  
PAGU
            
         Mesmo com tantos registros, essa mulher que resistiu e lutou por uma sociedade brasileira democrática permanece tão escondida quanto as anarquistas Teresa Fabri e Teresa Carine, que em 1906, em São Paulo, iniciaram entre as costureiras um ruidoso movimento pela redução da jornada de trabalho para oito horas diárias.

      A história, quase sempre escrita do ponto de vista masculino, passa por cima de nomes e personalidades femininas que sustentaram lutas duríssimas. No Rio Grande do Norte, em 1927, uma lei eleitoral bastante singular permitiu que uma mulher negra, Alzira Soriano de Souza, fosse a primeira prefeita eleita da América Latina.


                                                             
ALZIRA EM SEU GABINETE
      
      Antes, no Rio de Janeiro, em 1910, mesmo ano em que explodiu a revolta da Chibata, uma mulher chamada Leolinda de Figueiredo Daltro, defensora das mulheres e dos índios, se atreveu a fundar o Partido Republicano Feminino, eliminando qualquer tipo de intermediário masculino na representação política da mulher. Onde saber mais sobre o atrevimento dessas duas pessoas singulares? 

     É impossível enumerar todas as mulheres que ajudaram o Brasil a superar formas de preconceito e exclusão, a derrubar ditaduras e criar perspectivas seguras para um país democrático. Se focarmos a resistência à ditadura militar, deparamos com inúmeras mulheres que resistiram e foram tragadas pela violência criminosa dos órgãos de repressão.

    Ranusia Alves Rodrigues, Maria Augusta Thomaz, Esmeraldina Carvalho Cunha são apenas três nomes entre os muitos que opuseram resistência aos planos macabros dos militares. Nesse momento, o que se espera é que o relatório final da Comissão da Verdade abra caminhos para que se faça justiça a todas as mulheres perseguidas, torturadas, mortas e desaparecidas sob a truculência militar. Resgatar e revelar suas histórias são compromissos urgentes da sociedade brasileira.

         Nunca é demais lembrar que no país do futebol já houve leis proibindo mulher de praticá-lo. Não só o futebol, mas futebol de salão e de praia, halterofilismo e beisebol, como quiseram os militares em 1965. Getulio Vargas, em 1941, precedeu os militares nessa burrice proibindo inúmeras atividades esportivas como incompatíveis com as condições da mulher. Não foi sem luta que essas proibições foram superadas. Hoje, a presença das mulheres brasileiras nas mais diferentes modalidades esportivas garante ao país destaque internacional no cenário esportivo...

        Proibida também por ordem do chanceler Osvaldo Aranha foi a presença de mulheres no Ministério das Relações Exteriores, proibição só quebrada pela ação na justiça de uma mulher, Sandra Maria Cordeiro Melo, em 1953. No ano seguinte, motivado pelo exemplo de Sandra, o Congresso aprovou lei abrindo para as mulheres as portas da carreira diplomática.

            Mesmo ocultas e desaparecidas dos livros didáticos, dos enredos de novelas e seriados, documentários e até mesmo do cinema nacional, as mulheres estiveram - e sempre estarão - presentes nos momentos decisivos da história do país. Para quem deseja o Brasil sem memória não deve ser mesmo interessante relatar histórias como a de Margarida Maria Alves, líder sindical dos canavieiros em Pernambuco, assassinada na década de 1980 por ordem dos donos de engenhos daquele estado. A capacidade de Margarida de organizar uma categoria deu muita dor de cabeça para os poderosos pernambucanos. Para gente tão poderosa, a solução foi muito simples: contratar jagunços e calar sua voz com meia dúzia de balas.
                            
                                                        
MARGARIDA ALVES, LIDER DOS CANAVIEIROS
       
      A democracia brasileira sempre terá um ar de farsa enquanto a história das mulheres brasileiras não forem devidamente resgatadas e contadas em todos os níveis. Não haverá democracia verdadeira enquanto uma mulher fabulosa como Luisa Naihn não tiver sua trajetória exposta aos brasileiros. Luisa, negra liberta, foi mãe do abolicionista Luis Gama, um incomparável lutador pela abolição. Ninguém sabe até hoje o paradeiro de Luisa. Sabe-se apenas que participou de muitas revoltas pelo fim da escravidão e que foi personagem importantíssima na grande rebelião de escravos de 1835, na Bahia, a conhecida Revolta dos  Malês.
             
LUISA NAIHN E SEU FILHO LUIS GAMA , ABOLICIONISTA .

        Enfim, as lutas que forjaram direitos e deram ao país alguma maturidade democrática não foram obras exclusivamente masculinas. As mulheres, de forma tão decidida quanto os homens, também fizeram a sua parte, igualmente com muito sonho, sangue e também vidas. Portanto, neste Dia Internacional da Mulher é preciso chamar a atenção sobre o anonimato proposital em que foram colocadas as incontáveis lutadoras brasileiras.

        A festa que se faz hoje tem raízes na vida tensa, atribulada, sofrida e muitas vezes sem perspectivas dessas lutadoras, tanto as do passado como as do presente. Por isso, mais do que flores elas merecem nossa reverência e eterna lembrança. Elas sempre servirão de exemplo. E todo exemplo de dedicação e luta pela democracia precisa ser lembrado, ganhar páginas nos livros didáticos, virar tema ou personagem de filmes, teatro, cinema, novela. Enfim, para que o país encontre caminhos e soluções mais seguras para seu aprofundamento democrático, as grandes lutadoras sociais brasileiras precisam ser tiradas do anonimato. 

                                                                                  Silvio Prado 
                               
O escritor Silvio Prado mora em  de Taubaté SP , é  Formado pela UNITAU e PROFESSOR DE HISTÓRIA NA REDE ESTADUAL de Ensino na cidade.

                                               
Dilma em 1970 e 2010 

                         Depois desse primoroso texto do amigo Silvio Prado, quero homenagear TODAS as mulheres  brasileiras, na figura de nossa Presidenta DILMA VANA ROUSSEF que foi aguerrida guerreira  contra a ditadura militar;  foi presa, torturada e lutou pela liberdade da nação brasileira.

                                                     
MULHERES BRASILEIRAS


À  DILMA, À TODAS , O MEU RESPEITO MAIS PROFUNDO!!!!

terça-feira, 3 de março de 2015

GUIDO MANTEGA E A AUTORIZAÇÃO PARA "DELETAR O DIFERENTE". (por Eliane Brum)



Como tantos outros blogs, publico aqui o artigo de Eliane Brum no EL PAIS . Um dos mais lúcidos e densos artigos que li nos últimos dias 


GUIDO MANTEGA E A AUTORIZAÇÃO PARA DELETAR A DIFERENÇA  (por Eliane Brum)



     Em 19 de fevereiro, Guido Mantega, ex-ministro da Fazenda dos governos de Lula e de Dilma Rousseff, estava na lanchonete do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, quando foi hostilizado por uma mulher, com o apoio de outras pessoas ao redor. Os gritos: “Vá pro SUS!”. Entre eles, “safado” e “fdp”. Mantega era acompanhado por sua esposa, Eliane Berger, psicanalista. Ela faz um longo tratamento contra o câncer no hospital, mas o casal estava ali para visitar um amigo. O episódio se tornou público na semana passada, quando um vídeo mostrando a cena foi divulgado no YouTube.
       Entre as várias questões importantes sobre o momento atual do Brasil – mas não só do Brasil – que o episódio suscita, esta me parece particularmente interessante:

                                                 

“Que passo é esse que se dá entre a discordância com relação à política econômica e a impossibilidade de sustentar o lugar do OUTRO no espaço público?”.

     A pergunta consta de uma carta escrita pelo Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública (MPASP), que encontrou na cena vivida por Guido e Eliane ecos do período que antecedeu a Segunda Guerra, na Alemanha nazista, quando se iniciou a construção de um clima de intolerância contra judeus, assim como contra ciganos, homossexuais e pessoas com deficiências mentais e/ou físicas. O desfecho todos conhecem. Em apoio a Guido e Eliane, mas também pela valorização do Sistema Único de Saúde (SUS), que atende milhões de brasileiros, o MPASP lançou a hashtag #VamosTodosProSUS.

      Pode-se aqui fazer a ressalva de que a discordância vai muito além da política econômica e que o ex-ministro petista encarnaria na lanchonete de um dos hospitais privados mais caros do país algo bem mais complexo. Mas a pergunta olha para um ponto preciso do cotidiano atual do Brasil: em que momento a opinião ou a ação ou as escolhas do outro, da qual divergimos, se transforma numa impossibilidade de suportar que o outro exista? E, assim, é preciso eliminá-lo, seja expulsando-o do lugar, como no caso de Guido e Eliane, seja eliminando sua própria existência – simbólica, como em alguns projetos de lei que tramitam no Congresso, visando suprimir direitos fundamentais dos povos indígenas ou de outras minorias; física, como nos crimes de assassinato por homofobia ou preconceito racial.

       O que significa, afinal, esse passo a mais, o limite ultrapassado, que tem sido chamado de “espiral de ódio” ou “espiral de intolerância”, num país supostamente dividido (e o supostamente aqui não é um penduricalho)? De que matéria é feita essa fronteira rompida?

      A resposta admite muitos ângulos. Na minha hipótese, entre tantas possíveis, peço uma espécie de licença poética à filósofa Hannah Arendt, para brincar com o conceito complexo que ela tão brilhantemente criou e chamar esse passo a mais de “a boçalidade do mal”. Não banalidade, mas boçalidade mesmo. Arendt, para quem não lembra, alcançou “a banalidade do mal” ao testemunhar o julgamento do nazista Adolf Eichmann, em Jerusalém, e perceber que ele não era um monstro com um cérebro deformado, nem demonstrava um ódio pessoal e profundo pelos judeus, nem tampouco se dilacerava em questões de bem e de mal. Eichmann era um homem decepcionantemente comezinho que acreditava apenas ter seguido as regras do Estado e obedecido à lei vigente ao desempenhar seu papel no assassinato de milhões de seres humanos. Eichmann seria só mais um burocrata cumprindo ordens que não lhe ocorreu questionar. A banalidade do mal se instala na ausência do pensamento.

      A boçalidade do mal, uma das explicações possíveis para o atual momento, é um fenômeno gerado pela experiência da internet. Ou pelo menos ligado a ela. Desde que as redes sociais abriram a possibilidade de que cada um expressasse livremente, digamos, o seu “eu mais profundo”, a sua “verdade mais intrínseca”, descobrimos a extensão da cloaca humana. Quebrou-se ali um pilar fundamental da convivência, um que Nelson Rodrigues alertava em uma de suas frases mais agudas: “Se cada um soubesse o que o outro faz dentro de quatro paredes, ninguém se cumprimentava”. O que se passou foi que descobrimos não apenas o que cada um faz entre quatro paredes, mas também o que acontece entre as duas orelhas de cada um. Descobrimos o que cada um de fato pensa sem nenhuma mediação ou freio. E descobrimos que a barbárie íntima e cotidiana sempre esteve lá, aqui, para além do que poderíamos supor, em dimensões da realidade que só a ficção tinha dado conta até então.

       Descobrimos, por exemplo, que aquele vizinho simpático com quem trocávamos amenidades bem educadas no elevador defende o linchamento de homossexuais. E que mesmo os mais comedidos são capazes de exercer sua crueldade e travesti-la de liberdade de expressão. Nas postagens e comentários das redes sociais, seus autores deixam claro o orgulho do seu ódio e muitas vezes também da sua ignorância. Com frequência reivindicam uma condição de “cidadãos de bem” como justificativa para cometer todo o tipo de maldade, assim como para exercer com desenvoltura seu racismo, sua coleção de preconceitos e sua abissal intolerância com qualquer diferença.

       Foi como um encanto às avessas – ou um desencanto. A imagem devolvida por esse espelho é obscena para além da imaginação. Ao libertar o indivíduo de suas amarras sociais, o que apareceu era muito pior do que a mais pessimista investigação da alma humana. Como qualquer um que acompanha comentários em sites e postagens nas redes sociais sabe bem, é aterrador o que as pessoas são capazes de dizer para um outro, e, ao fazê-lo, é ainda mais aterrador o que dizem de si. Como o Eichmann de Hannah Arendt, nenhum desses tantos é um tipo de monstro, o que facilitaria tudo, mas apenas ordinariamente humano.


                                                 

       
                                                  JULGAMENTO DE EICHMANN EM JERUSALÉM 

       Ainda temos muito a investigar sobre como a internet, uma das poucas coisas que de fato merecem ser chamadas de revolucionárias, transformaram a nossa vida e o nosso modo de pensar e a forma como nos enxergamos. Mas acho que é subestimado o efeito daquilo que a internet arrancou da humanidade ao permitir que cada indivíduo se mostrasse sem máscaras: a ilusão sobre si mesma. Essa ilusão era cara, e cumpria uma função – ou muitas – tanto na expressão individual quanto na coletiva. Acho que aí se escavou um buraco bem fundo, ainda por ser melhor desvendado.

         Como aprendi na experiência de escrever na internet que não custa repetir o óbvio, de forma nenhuma estou dizendo que a internet, um sonho tão estupendo que jamais fomos capazes de sonhá-lo, é algo nocivo em si. A mesma possibilidade de se mostrar, que nos revelou o ódio, gerou também experiências maravilhosas, inclusive de negação do ódio. Assim como permitiu que pessoas pudessem descobrir na rede que suas fantasias sexuais não eram perversas nem condenadas ao exílio, mas passíveis de serem compartilhadas com outros adultos que também as têm. Do mesmo modo, a internet ampliou a denúncia de atrocidades e a transformação de realidades injustas, tanto quanto tornou o embate no campo da política muito mais democrático.

        Meu objetivo aqui é chamar a atenção para um aspecto que me parece muito profundo e definidor de nossas relações atuais. A sociedade brasileira, assim como outras, mas da sua forma particular, sempre foi atravessada pela violência. Fundada na eliminação do outro, primeiro dos povos indígenas, depois dos negros escravizados, sua base foi o esvaziamento do diferente como pessoa, e seus ecos continuam fortes. A internet trouxe um novo elemento a esse contexto. Quero entender como indivíduos se apropriaram de suas possibilidades para exercer seu ódio – e como essa experiência alterou nosso cotidiano para muito além da rede.

         É difícil saber qual foi a primeira baixa. Mas talvez tenha sido a do pudor. Primeiro, porque cada um que passou a expressar em público ideias que até então eram confinadas dentro de casa ou mesmo dentro de si, descobriu, para seu júbilo, que havia vários outros que pensavam do mesmo jeito. Mesmo que esse pensamento fosse incitação ao crime, discriminação racial, homofobia, defesa do linchamento. Que chamar uma mulher de “vagabunda” ou um negro de “macaco”, defender o “assassinato em massa de gays”, “exterminar esse bando de índios que só atrapalham” ou “acabar com a raça desses nordestinos safados” não só era possível, como rendia público e aplausos. Pensamentos que antes rastejavam pelas sombras passaram a ganhar o palco e a amealhar seguidores. E aqueles que antes não ousavam proclamar seu ódio cara a cara, sentiram-se fortalecidos ao descobrirem-se legião. Finalmente era possível “dizer tudo”. E dizer tudo passou a ser confundido com autenticidade e com liberdade.

        Para muitos, havia e há a expectativa de que o conhecimento transmitido pela oralidade, caso de vários povos tradicionais e de várias camadas da população brasileira com riquíssima produção oral, tenha o mesmo reconhecimento na construção da memória que os documentos escritos. Na experiência da internet, aconteceu um fenômeno inverso: a escrita, que até então era uma expressão na qual se pesava mais cada palavra, por acreditar-se mais permanente, ganhou uma ligeireza que historicamente esteve ligada à palavra falada nas camadas letradas da população. As implicações são muitas, algumas bem interessantes, como a apropriação da escrita por segmentos que antes não se sentiam à vontade com ela. Outras mostram as distorções apontadas aqui, assim como a inconsciência de que cada um está construindo a sua memória: na internet, a possibilidade de apagar os posts é uma ilusão, já que quase sempre eles já foram copiados e replicados por outros, levando à impossibilidade do esquecimento. 

        O fenômeno ajuda a explicar, entre tantos episódios, a resposta de Washington Quaquá, prefeito de Maricá e presidente do PT fluminense, uma figura com responsabilidade pública, além de pessoal, às agressões contra Guido Mantega. Em seu perfil no Facebook, ele sentiu-se livre para expressar sua indignação contra o que aconteceu na lanchonete do Einstein nos seguintes termos: “Contra o fascismo a porrada. Não podemos engolir esses fascistas burguesinhos de merda! (…) Vamos pagar com a mesma moeda: agrediu, devolvemos dando porrada!”.

      O ódio, e também a ignorância, ao serem compartilhados no espaço público das redes, deixaram de ser algo a ser reprimido e trabalhado, no primeiro caso, e ocultado e superado, no segundo, para ser ostentado. E quando me refiro à ignorância, me refiro também a declarações de não saber e de não querer saber e de achar que não precisa saber. Me arrisco a dizer que havia mais chances quando as pessoas tinham pudor, em vez de orgulho, de declarar que acham museus uma chatice ou que não leram o texto que acabaram de desancar, porque pelo menos poderia haver uma possibilidade de se arriscar a uma obra de arte que as tocasse ou a descobrir num texto algo que provocasse nelas um pensamento novo.

      Sempre se culpa o anonimato permitido pela rede pelas brutalidades ali cometidas. É verdade que o anonimato é uma realidade, que há os “fakes” (perfis falsos) e há toda uma manipulação para falsificar reações negativas a determinados textos e opiniões, seja por grupos organizados, seja como tarefa de equipes de gerenciamento de crise de clientes públicos e privados. Tanto quanto há campanhas de desqualificação fabricadas como “espontâneas”, nas quais mentiras ou boatos são disseminados como verdades comprovadas, causando enormes estragos em vidas e causas.

           Mas suspeito que, no que se refere ao indivíduo, a notícia – boa ou má – é que o anonimato foi em grande medida um primeiro estágio superado. Uma espécie de ensaio para ver o que acontece, antes de se arriscar com o próprio RG. Não tenho pesquisa, só observação cotidiana. Testemunho dia a dia o quanto gente com nome e sobrenome reais é capaz de difundir ódio, ofensas, boatos, preconceitos, discriminação e incitação ao crime sem nenhum pudor ou cuidado com o efeito de suas palavras na destruição da reputação e da vida de pessoas também reais. A preocupação de magoar ou entristecer alguém, então, essa nem é levada em conta. Ao contrário, o cuidado que aparece é o de garantir que a pessoa atacada leia o que se escreveu sobre ela, o cuidado que se toma é o da certeza de ferir o outro. O outro, se não for um clone, só existe como inimigo.

       O problema, quando se aponta os “bárbaros”, e aqui me incluo, é justamente que os bárbaros são sempre os outros. Neste sentido, a eleição de 2014, da qual derivou a tese, para mim bastante questionável, do “Brasil partido”, bagunçou um bocado essa crença. Não foi à toa que amizades antigas se desfizeram, parentes brigaram e até amores foram abalados, que até hoje há gente que se gostava que não voltou a se falar. As redes sociais, a internet, viraram um campo de guerra, num nível maior do que em qualquer outra eleição ou momento histórico. Só que, desta vez, os bárbaros eram até ontem os aliados na empreitada da civilização.

     Descobriu-se então que pessoas com quem se compartilhou sonhos ou pessoas que se considerava éticas – pessoas do “lado certo” – eram capazes de lançar argumentos desonestos – e que sabiam ser desonestos – e até mentiras descaradas, assim como de torturar números e manipular conceitos. Eram capazes de fazer tudo o que sempre condenaram, em nome do objetivo supostamente maior de ganhar a eleição. Os bárbaros não eram mais os outros, os de longe. Desta vez, eram os de perto, bem de perto, que queriam não apenas vencer, mas destruir o diferente ou o divergente, eu ou você. "O BÁRBARO ERA UM IGUAL, O QUE TORNA TUDO MAIS COMPLICADO".

      Não se sai imune desse confronto com a realidade do outro, a parte mais fácil. Não se sai impune desse confronto com a realidade de si, este um enfrentamento só levado adiante pelos que têm coragem. Como sabemos, enquanto for possível e talvez mesmo quando não seja mais, cada um fará de tudo para não se enxergar como bárbaro, mesmo que para isso precise mentir para si mesmo. É duro reconhecer os próprios crimes, assim como as traições, mesmo as bem pequenas, e as vilanias. Mas, no fundo, cada um sabe o que fez e os limites que ultrapassou. O que aconteceu na eleição de 2014 é que os bons e os limpinhos descobriram algumas nuances a mais de sua condição humana, e descobriram o pior: também eles (nós?) não são capazes de respeitar a opinião e a escolha diferente da sua. Também eles (nós?) não quiseram debater, mas destruir. De repente, só havia “haters” (odiadores). De novo: desse confronto não se sai impune. A boçalidade do mal ganhou dimensões imprevistas.

        Seria improvável que a experiência vivida na internet, na qual o que aconteceu nas eleições foi apenas o momento de maior desvendamento, não mudasse o comportamento quando se está cara a cara com o outro, quando se está em carne e osso e ódio diante do outro, nos espaços concretos do cotidiano. Seria no mínimo estranho que a experiência poderosa de se manifestar sem freios, de se mostrar “por inteiro”, de eliminar qualquer recalque individual ou trava social e de “dizer tudo” – e assim ser “autêntico”, “livre” e “verdadeiro” – não influenciasse a vida para além da rede. Seria impossível que, sob determinadas condições e circunstâncias, os comportamentos não se misturassem. Seria inevitável que essa “autorização” para “dizer tudo” não alterasse os que dela se apropriaram e se expandisse para outras realidades da vida. E a legitimidade ganhada lá não se transferisse para outros campos. Seria pouco lógico acreditar que a facilidade do “deletar” e do “bloquear” da internet, um dedo leve e só aparentemente indolor sobre uma tecla, não transcendesse de alguma forma. Não se trata, afinal, de dois mundos, mas do mesmo mundo – e do mesmo indivíduo.

        A mulher que se sentiu “no direito” de xingar Guido Mantega e por extensão Eliane Berger, e tornar sua presença na lanchonete do hospital insuportável, assim como as pessoas que se sentiram “no direito” de aumentar o coro de xingamentos, possivelmente acreditem que estavam apenas exercendo a liberdade de expressão como “cidadãos de bem indignados com o PT”, uma frase corriqueira nos dias de hoje, quase uma bandeira. 
         
      Ao mandar Guido e Eliane para outro lugar – e não para qualquer lugar, mas “pro SUS” – devem acreditar que o Sistema Único de Saúde é a versão contemporânea do inferno, para a qual só devem ir os proscritos do mundo. Possivelmente acreditem também que o espaço do Hospital Israelita Albert Einstein deve continuar reservado para uma gente “diferenciada”. Em nenhum momento parecem ter enxergado Guido e Eliane como pessoas, nem se lembrado de que quem está num hospital, seja por si mesmo, seja por alguém que ama, está numa situação de fragilidade semelhante a deles. O direito ao ódio e à eliminação do outro mostrou-se soberano: aquele que é diferente de mim, eu mato. Ou deleto. Simbolicamente, no geral; fisicamente, com frequência assustadora.

         Mas, claro, nada disso é importante. Nem é importante a greve dos caminhoneiros ou a falta de água na casa dos mais pobres. Tampouco a destruição de estátuas milenares pelo Estado Islâmico. Essencial mesmo é o grande debate da semana que passou: descobrir se o vestido era branco e dourado – ou preto e azul. Até mesmo sobre tal irrelevância, a selvageria do bate-boca nas redes mostrou que não é possível ter opinião diferente.

"  JÁ   DEMOS   UM   PASSO  ALÉM  DA   BANALIDADE...   NOSSO   TEMPO    É   O       DA   BOÇALIDADE".